20/07/2018 às 20h50min - Atualizada em 20/07/2018 às 20h50min

Último índio de povo massacrado vive há 22 anos em isolamento

Vídeo divulgado pela Funai reforça necessidade de proteção das terras indígenas

Agência O Globo -
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(Foto: Giordano Cipriani)

RIO — Ele não tem nome, família, nem companheiros. Passou os últimos 22 anos em completo isolamento, após o seu grupo ser dizimado em conflitos de terra numa região remota no sul do estado de Rondônia. Conhecido como “índio do buraco” — por escavar covas de aproximadamente três metros de profundidade nas palhoças onde vive —, ele é o último habitante da Terra Indígena Tanaru, uma área florestal de uso restrito com 80 km² encravada entre cinco fazendas de pasto e agricultura mecanizada. Arredio e traumatizado, ele foge ao perceber a presença dos agentes que fazem o monitoramento. Em apenas uma oportunidade ele foi filmado e o vídeo acaba de ser divulgado pela Funai (Fundação Nacional do Índio).

 

 

 

 

Altair Algayer, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé (FPE Guaporé), conta que os primeiros relatos sobre a presença de um grupo indígena isolado na região surgiram na década de 1970. Por causa de conflitos com grileiros, madeireiros e fazendeiros, esse povo era constantemente forçado a se mudar e seus integrantes foram morrendo. Após um ataque em 1995, o grupo que já era pequeno — segundo relatos, formado por apenas seis membros — foi reduzido a apenas uma pessoa, o “índio do buraco”.

No ano seguinte, a Funai, enfim, conseguiu confirmar a presença de índios na área após encontrar vestígios de acampamentos, mas o “índio do buraco” só foi avistado em 1997. A confirmação permitiu a criação da Terra Indígena, em 1998, que visa proteger os índios, mas enfurece fazendeiros que são proibidos de produzir nas áreas demarcadas. Mesmo com a presença da Funai, o “índio do buraco” foi alvo de atentados: a área só será protegida enquanto ele viver.

— Onde o índio está, a terra é dele. Isso é garantido pela Constituição — explica Fany Ricardo, especialista em povos indígenas isolados no . — Mas se o índio morre, o uso da terra é liberado. Então, os interessados tentam matá-lo.

De dois em dois meses, uma equipe da FPE Guaporé faz operações de monitoramento para avaliar a situação do indígena. Para ajudá-lo a sobreviver, deixam sementes e ferramentas nos locais por onde o índio passa.

— É um sobrevivente. É natural para ele conseguir caça, fazer pequenos cultivos, então o sustento não é a questão. O que me impressiona é a parte mental, como ele consegue trabalhar a cabeça para passar todo esse tempo sozinho — diz Algayer. — Certamente ele participava de rituais, festas, usava pinturas pelo corpo, produzia cerâmica. Isso tudo foi perdido e superar essa perda deve ter sido muito difícil. E ele conseguiu.

 

 

Desde 1987, a Funai possui uma política de não fazer contato com povos indígenas isolados, mas de garantir a proteção dos territórios por eles ocupados. Como o “índio do buraco” estava solitário, foram feitas tentativas de aproximação, mas ele sempre mostrou claramente que não desejava ser contatado. O antropólogo e cineasta Vincent Carelli participou da descoberta dos primeiros vestígios e avistamentos.

— Sempre que a gente encontrava a cabana onde ele estava, ele se mudava — relembra. — Em uma oportunidade, ele se escondeu numa cabana de caça e a gente conseguiu cercá-lo. Ele ficou lá dentro por seis horas, sem emitir nenhum som. A gente nem sabe se ele é mudo.

A última tentativa de contato aconteceu em 2005 e acabou com um funcionário da Funai ferido por uma flechada no pescoço. A primeira reação do indígena é fugir, mas ao se sentir ameaçado, ele pode atacar. Contudo, não existem relatos de que ele tenha ameaçado ou atacado moradores de comunidades vizinhas.

O monitoramento é realizado por meio de incursões no território. “Com rede e mochila nas costas e dias de caminhadas”, conta Algayer. Até agora, já foram identificadas 48 palhoças usadas pelo índio como moradia, além de campos de caça e pequenos cultivos de mandioca, milho e outras variedades. Em todas as casas existe um buraco, com cerca de um metro de comprimento por meio metro de largura e três de profundidade. É possível que a cova seja usada para armazenar água ou sirva de esconderijo.

Os sertanistas que estudam o índio pouco sabem sobre seu passado e sua cultura. Segundo Algayer, são poucos os registros em imagens, já que ele sempre percebe a presença dos agentes e foge sem ser visto. Nessas duas décadas de monitoramento não há um único registro em áudio para a identificação da língua, e os arcos e as flechas são similares aos de todos os outros povos da região. O vídeo divulgado esta semana, gravado em 2011, foi a única oportunidade em que os funcionários da Funai conseguiram se aproximar sem serem notados.

 

Nas imagens é possível ver um homem, aparentemente forte e saudável, usando um machado para derrubar uma árvore. Algayer calcula que ele tenha cerca de 55 anos. Foi o barulho das machadadas que permitiu aos sertanistas identificar exatamente onde estava o índio, para que se aproximassem sem serem vistos. As imagens tremidas, com pouco mais de um minuto de duração, repercutiram em todo o mundo. Para Fiona Watson, diretora da , a divulgação do vídeo neste momento tem implicações políticas.

Com a força da bancada ruralista, o Congresso tenta aprovar leis que dificultam a preservação dos territórios indígenas, como a PEC 215/00, que transfere do Executivo para o Legislativo a competência de aprovar demarcações de terras, e o PLP 227/12, que abre portas para a exploração comercial de riquezas em terras indígenas.

— Esse vídeo não é apenas uma curiosidade. Ele serve para chamar atenção da sociedade de que esse homem só existe por causa dos sertanistas que estão lá trabalhando. Sem a Funai, ele já estaria morto como os outros do seu grupo — destaca Fiona. — Existem políticos de Mato Grosso e Rondônia que negam a existência de índios isolados. Acusam a Funai de inventá-los para proteger terras que poderiam ser usadas para a exploração. Eles existem e esse vídeo prova isso.

A especialista destaca que o Brasil é o país com o maior número de povos indígenas isolados. Segundo dados da Funai, existem 28 grupos confirmados e 86 em avaliação, sendo 26 em estudo e os outros 60 apenas com indicações. E a tragédia do “índio do buraco” não se restringe a Tanaru. Na Terra Indígena Pirikpura, em Mato Grosso, restam apenas dois homens.

— O nosso “progresso” reduziu as florestas e os povos indígenas diminuíram com elas — lamenta Algayer. — O “índio do buraco” está nessa situação não porque ele quer. Cabe a nós garantir que ele tenha a liberdade de viver, bem e em paz, dentro da floresta.


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