23/10/2021 às 12h33min - Atualizada em 23/10/2021 às 12h33min

20 anos do iPod: como Apple fez indústria da música tremer e se afastar do disco

Depois do abalo provocado pela disseminação do iPod, consumidores voltaram a pagar para ouvir música, que também passou a ser tratada como serviço

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Desde a virada do século 21, o assunto música passou a descolar-se do assunto disco. O objeto chato e redondo que fez gerações inteiras apaixonarem-se por canções, artistas, capas e instrumentistas, seja em sua forma clássica preta de 30 centímetros de diâmetro ou em seu formato mais contemporâneo, o disquinho prateado com menos da metade deste tamanho, deixou de ser o parâmetro da indústria fonográfica. Há 20 anos isso parecia um paradoxo mortal, e as grandes gravadoras anunciaram que a música sem disco seria um golpe irreversível para este mercado.

Duas décadas depois de o iPod surgir alardeado como substituto para o velho equipamento de som, a indústria da música não só segue viva, apesar de combalida, principalmente devido ao impacto da pandemia nas apresentações ao vivo, como o público aos poucos acostuma-se com uma realidade que parecia improvável há 20 anos, pagando para ouvir música que não vinha no disco.

A criação do tocador de MP3 da Apple é um dos marcos desta nova fase, mas a digitalização de áudio era algo pesquisado desde o meio do século 20. Nos anos 1960, compositores de música erudita começaram a usar o computador como plataforma para produzir e compor, inclusive no Brasil. Em 1962, o futuro maestro tropicalista Rogério Duprat escreveu a primeira peça para computador no país, usando um aparelho que havia chegado à Universidade de São Paulo (USP).

Colega de classe de Duprat em conservatórios europeus, o músico iconoclasta norte-americano Frank Zappa chegou, tempos depois, a propor para as gravadoras a venda de música pela incipiente internet.

MP3 e banda larga impulsionaram a digitalização da música

Foi com a popularização da web que a digitalização da música deixou de ser algo experimental. A criação do arquivo de MP3 pelo Instituto Fraunhofer, na Alemanha, em 1993, acelerou o processo.

Até então, com uma internet ainda ligada à rede telefônica e, portanto, com baixíssima velocidade de transmissão de dados, transferir uma música pela internet era um processo que demorava horas. A invenção do arquivo comprimido que aos poucos tornou-se sinônimo de música digital diminuía em mais de dez vezes o tamanho deste arquivo, fazendo o tempo de download cair para alguns minutos.

Isso pavimentou o caminho para as plataformas de streaming, que permitiam ouvir a música na medida em que ela era baixada, sem que o arquivo precisasse estar na máquina. Esta nova tecnologia fez surgir uma das primeiras redes sociais bem-sucedidas do mundo — o MySpace, criado pelo norte-americano Tim Vanderhook em 2003 — e o maior site de vídeos online — o YouTube, fundado pelos norte-americanos Steve Chen e Chad Hurley em 2005 –, que foram as primeiras sementes para as plataformas de streaming atuais.

A revolução do Napster

Antes da chegada do streaming, contudo, um programa criado por um adolescente em 1999 para facilitar a troca de coleções de músicas digitais entre seus amigos mudou completamente a história da indústria. O Napster, apelido do universitário Shawn Fanning que acabou batizando sua invenção, permitiu que as pessoas baixassem músicas dos computadores umas das outras sem a necessidade de os arquivos estarem em servidores, que até então eram restritos aos que trabalhavam com tecnologia da informação.

Com o Napster, qualquer computador se tornava um servidor, e na virada do século parecia que toda a música gravada até então estaria disponível gratuitamente para quem tivesse acesso à rede.

“Difícil lembrar com clareza o que era viver sem acesso nem à música nem mesmo à informação sobre música”, lembra, sem saudosismo, o músico e empresário Maurício Bussab, sócio da distribuidora Tratore. “Eu guardava a sete chaves um guia impresso do rock dos anos 80, editado em 1984, que listava bandas e discografias completas para servir como referência caso um dia escutasse a banda.”

A música gratuita através do Napster ligou um alerta nas gravadoras multinacionais, que começaram uma campanha contra o programa e contra o download gratuito, dizendo que isso era pirataria digital e que a música sem disco iria matar a indústria.

A campanha chegou ao cúmulo de a banda Metallica processar os próprios fãs por terem baixado músicas sem autorização. O Napster foi alvo de diversos processos, foi fechado e depois comprado por outras empresas, mas o padrão que ele criou permitiu que novos programas surgissem e que o download gratuito se tornasse a regra da música digital no início do século.

“Sempre fui um cara que gosta de ouvir coisas estranhas e de lugares diferentes e antes do digital eu ficava escutando fitas cassete velhas, discos que meu pai trazia de viagens e grupos de hard rock dos anos 70”, lembra o músico André Abujamra. “Quando apareceu essa coisa do digital, eu escrevia “xvaghs” na busca e aparecia um grupo da Bulgária, era maravilhoso.”

A aproximação entre artistas e o público

Outros souberam usar a oportunidade, como a banda inglesa Radiohead, que lançou o disco “In Rainbows”, em 2007, permitindo que o público pagasse o quanto quisesse pelo download, inclusive nada. Isso fez muitos artistas cogitarem a distribuição gratuita de álbuns como forma de burlar o sistema de rádios e loja de discos, ainda dominado pelas gravadoras, como uma brecha para atingir um novo público.

A cantora paulista Tulipa Ruiz colocou à disposição gratuitamente seu segundo álbum, “Tudo Tanto”, de 2012, depois de ouvir versões com qualidade inferior circulando gratuitamente na rede. “Quer me baixar? Me baixa com dignidade”, disse em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” à época.

“Gosto de pensar que foi uma aproximação entre artista e público e, em certa medida, uma desintermediação dessa relação”, conta Juliano Polimeno, sócio-fundador da Playax, startup de análise de dados e desenvolvimento de audiência para a música. “De modo geral, a pergunta dos ouvintes que sofre alteração desde a invenção do fonógrafo é ‘onde ouço a música?’, mas não a que me parece permanente e essencial que é ‘pra que serve a música?'”

O Brasil teve uma experiência à parte quando artistas e gravadoras independentes entenderam que as pessoas não iriam pagar para baixar discos naquele primeiro instante. A gravadora paulista Trama criou um serviço de download remunerado para a plataforma Trama Virtual — anterior ao MySpace, inclusive, embora não fosse vendida como rede social — e conseguiu patrocinadores para bancar discos baixados gratuitamente pelo público.

A invenção do iPod, em 2001, foi apenas um dos fatores desta mudança. Outro produto criado pela mesma empresa seis anos depois, o iPhone, radicalizaria mais o conceito de música portátil. O novo aparelho tornaria o iPod obsoleto, e as novas redes de conexão móvel passaram a permitir que se ouvisse música online sem necessariamente baixar arquivos.

Bussab enumera as transformações que a música digital causou ao meio, 20 depois. “A vitória do single, a desintermediação entre artista e público, o fim do suporte físico — mesmo o pendrive –, disco não é mais presente e disco continua sendo cultura.”

O crescimento das plataformas de streaming

Neste meio tempo, as plataformas de streaming como as conhecemos passaram a surgir. A principal delas, o Spotify, foi criada na Suécia por Daniel Ek em 2006, mas só na década seguinte tornou-se mais presente, impulsionando concorrentes como a francesa Deezer, a norte-americana Tidal, a chinesa Baidu e a transformação de outros serviços, como o YouTube e o Apple Music, em plataformas equivalentes.

Em princípio gratuitas, estas plataformas operam com o modelo de anúncios e aos poucos foram oferecendo opções de assinatura em que se paga para não ouvir propaganda. Isto consolidou a transformação atual do mercado, que, mesmo com CDs ainda à venda e a volta do vinil, está cada vez mais tratando os consumidores como assinantes, e a música é mais um serviço do que um produto.

“Nosso crescimento global de assinantes continua a ser forte e temos atendido e até mesmo excedido consistentemente todas as nossas metas internas”, explica Carolina Alzuguir, líder de parcerias com artistas e gravadoras do Spotify no Brasil. Ela cita o último relatório financeiro da empresa, que aborda o segundo trimestre de 2021: são 365 milhões de usuários ativos no mundo, sendo 22% na América Latina.

“Há 165 milhões de assinantes Premium globalmente — sendo 20% deles na América Latina –, e o número global é fruto de um crescimento de 20% ano a ano.”

“Os números das plataformas mostram um bom número de consumidores pagando, mas é importante fazer uma ressalva, porque mesmo quem acha que não paga está pagando, porque se você não está pagando então o produto é você”, afirma Bussab sobre o fato de estas plataformas, como as redes sociais em geral, negociarem anúncios a partir de dados relacionados aos hábitos de consumo dos usuários.

Polimeno diz que este cenário, especificamente no Brasil, ainda é muito incipiente. “Os serviços de streaming não divulgam informações sobre o perfil econômico de seus assinantes, que acredito ser algo entre 5% e 8% da população brasileira, mas acredito ser possível conjecturar que a base de usuários pagantes está concentrada nas classes média e alta. Os planos de acesso suportados por anúncios trouxeram parte da população para alguns serviços de música, mas acredito que a conversão para o serviço pago seja baixa. A oferta de ‘comodidade’ para não ouvir anúncios não supera a demanda por gratuidade.”

A remuneração dos artistas

Os artistas têm recebido mais do que quando a música era baixada gratuitamente, mas menos do que quando sua parte vinha da venda do produto físico. “As plataformas digitais estão se adequando ainda”, explica o decano da bossa nova Roberto Menescal, que foi executivo de gravadora no auge da mídia física, como produtor musical e diretor artístico.

“Já conseguimos muita coisa e vamos conseguir muito mais. Através da execução de nossas músicas, estas plataformas vendem anúncios de outras firmas, de outros produtos, e estamos num embate muito forte com eles, mas estamos conseguindo. Acho que, no final, a gente vai ganhar muito mais do que ganhava com produto físico.”

“O mercado está num momento de evolução mais que revolução, Não estamos vivendo o momento Napster de 1999 nem o momento pendrive de 2009”, pondera Bussab. “Estamos num momento estável, onde as plataformas estão crescendo seus bolos e brigando por mais espaço nos mercados.”

O futuro e a essência da música

Entre as tendências para um futuro próximo, ele cita a melhoria na qualidade do áudio e das informações técnicas para aí sim chegar no que seria a próxima grande briga: a queda do rádio como o conhecemos. “É razoável esperar que a mesma customização de playlists atendendo a nichos musicais que as plataformas trouxeram seja estendida a esportes, notícias etc.”, diz, acrescentando a razão do interesse recente em podcasts. “É a próxima fronteira. As plataformas querem ser um botão único.”

Polimeno aponta que as reviravoltas do mercado não alteram a essência da música e a relação que temos com ela. “Não sei se teremos implantes cerebrais que irão tocar música, máquinas de inteligência artificial produzindo mais hits repetitivos, realidade virtual para assistir shows em casa ou se a tendência é voltarmos para o vinil e um caráter ‘colecionável’. Me interessa mais a relação entre artista e público — esses são os elos permanentes nessa história toda. Não me parece que tivemos uma mudança extremamente significativa na forma como a música marca emocionalmente a vida das pessoas, de como ela ajuda a construir personalidades e elos de amizade”, afirma.

“Talvez os jovens não queiram mais ser ‘superstars’ da música, e sim youtubers ou influenciadores digitais, mas isso não diminui a importância da música na vida das pessoas. Do ponto de vista da criação, uma coisa me parece certa: as máquinas não saberão criar surpresas artísticas, o inesperado não cabe na máquina que só aprende com o passado dos dados.”

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