28/06/2019 às 10h16min - Atualizada em 28/06/2019 às 11h12min

Erros perigosos na nova lei de internação forçada

Professores analisam falta de coerência na nova legislação de internação forçada de adultos que fazem uso abusivo de drogas.

DINO
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Flávio Bortolozzi, professor de Criminologia da Universidade Positivo

O Brasil estreia uma nova legislação de internação forçada de adultos que fazem uso abusivo de drogas. Apesar de recente, a lei consagra mecanismos superados e contradições insuperáveis. Em harmonia com a Convenção de Nova York, recepcionada pelo Brasil com valor de emenda constitucional, a lei fala em "abordagem multidisciplinar", "equipe técnica multidisciplinar e multissetorial", porém, aponta que a internação dependeria apenas de "decisão por médico responsável", sem detalhar os requisitos e pressupostos, sem estabelecer um procedimento.

Deixou-se de assegurar de modo mais claro os direitos fundamentais incidentes antes, durante e após a internação. Não há previsão de ouvir a pessoa que se pretende internar, nem de revisão das internações. As falhas potencializam a violação de direitos dos pacientes e impõe custos para o Estado, que paga (e muito caro) pelas internações, a despeito da baixíssima eficácia.

Comparativamente, na Irlanda, veda-se indicação de internação por quem não teve contato com o paciente nas últimas 48 horas ou que tenha vinculação com o local de tratamento. Frisa-se que, ao concentrar o poder de internar e manter internado em um único profissional, a nova legislação aumenta exponencialmente o risco de abusos e de conflitos de interesses.

O tema das drogas é cercado por mitos e tabus, o que não autoriza que as políticas públicas de saúde sejam baseadas em mitos ou mesmo fake news. Curiosamente, o texto da lei aponta de maneira expressa que devem ser tomados os "conceitos objetivos e de fundamentação científica como forma de orientar as ações". Coloca-se em destaque a ciência, mas age-se em sentido contrário.

Para começar, deixou-se de conferir a devida atenção à distinção entre uso e uso abusivo, cientificamente consagrada. Por outro lado, acolhe-se a antiquada diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas, cuja falta de critério científico é consenso entre os pesquisadores. A lei, afinal, não consegue controlar os efeitos das substâncias.

Não bastassem tais equívocos, as novas normas valorizam a abstinência e deixam em segundo plano a redução de danos, na contramão da orientação da Organização Mundial da Saúde, que considera que não adianta tentar eliminar o uso de drogas, é preciso lidar com o uso e minimizar seus efeitos.

Em contraposição ao discurso de cientificidade, retirou-se do ar o acervo de pesquisa (e o próprio site) do Observatório Brasileiro sobre Políticas de Drogas (OBID). Também se esconde do público o III Levantamento sobre Uso de Drogas, elaborado pela Fiocruz, que demonstra a inconsistência do discurso da "epidemia do crack" e confirma que a droga mais preocupante para nossa sociedade é o álcool.

É preciso criticar ainda o caráter repressivo presente na legislação. Há consenso de que a guerra às drogas, pautada por uma lógica repressiva e extirpação do uso, está superada. Ao focar no combate, nem se reduziu o comércio, nem o consumo das substâncias. Pelo contrário, o crime organizado transnacional se fortalece cada vez mais com o mercado ilícito. Ao mesmo tempo, produz-se violência e encarceramento. O Atlas da Violência registra 60 mil homicídios por ano no país, ao mesmo tempo em que temos a terceira maior população de encarcerados do planeta, em grande parte, por crime de tráfico de drogas.

Esperava-se que, no ano de 2019, fôssemos capazes de produzir políticas públicas com mais seriedade, guiados pela ciência em vez de "achismos", moralismos ou ideologias, em especial em tema tão sensível.

A nova lei parte de pressupostos equivocados, e chega em soluções inadequadas e ultrapassadas. A lei sequer segue suas próprias premissas e, sobretudo, se esqueceu da mais importante — enfocar a pessoa em vez da droga. O que se pode esperar, lamentavelmente, são efeitos desastrosos.

 

*Flávio Bortolozzi, doutor em Direito pela UFPR e professor de Criminologia e Sociologia Jurídica da Universidade Positivo. Gabriel Schulman, doutor em Direito pela UERJ, advogado e professor da Universidade Positivo.

 



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