14/03/2020 às 18h19min - Atualizada em 14/03/2020 às 18h19min

Como comoção causada por morte de filho fez pais descobrirem sua vida secreta

Ab Noticia News
BBC
BLIZZARD ENTERTAINMENT

Mats Steen tinha 25 anos quando morreu, em um hospital em Oslo, Noruega, por causa de uma grave doença degenerativa com a qual conviveu desde o nascimento.

Seus pais, Robert e Trude Steen, sempre lamentaram as limitações impostas ao filho, que já não podia andar desde os sete anos e passava horas trancado no quarto, frente a um computador.

"A gente achava aquilo triste", contou Robert ao programa Outlook da BBC. "Era triste saber que ele não podia levar uma vida normal. Levava uma vida solitária. Os poucos amigos que tinha eram amigos da família. Raramente saía de casa."

Lorde Ibelin Redmoore

Lorde Ibelin Redmoore

Direito de imagemBLIZZARD ENTERTAINMENT
Image captionLord Ibelin Redmoore 'era uma pessoa em que todos confiavam, não importava se teu dia estivesse ruim, ele esteva sempre ali para conversar'

O funeral era para ser uma ocasião reservada e modesta, com parentes e alguns amigos. Mas, poucas horas depois de anunciar o falecimento de Mats em um blog que o filho mantinha, começaram a aparecer mensagens de pessoas desconhecidas — muitas de outros países — extremamente chocadas e que pareciam conhecer Mats a fundo.

E foi assim que os pais souberam, do nada, que o filho manteve, por mais de uma década, uma vida secreta em um mundo paralelo — o mundo virtual do jogo de aventura World of Warcraft. Um mundo em que Mats era querido e amado por várias pessoas, que fizeram questão de se despedir do amigo, ao lado de seus pais, em seu funeral em Oslo.

A vida secreta de Mats é contada em um podcast da série Que História!, da BBC News Brasil.

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Como ouvir o podcast

A primeira temporada de Que História!, produzida e apresentada por Thomas Pappon, terá dez episódios, que serão disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple, Spotify, Overcast e Castbox.

Além dessas há várias plataformas e apps que oferecem assinaturas do podcast — o que permite que cada novo episódio seja baixado automaticamente em seu dispositivo ou computador assim que for disponibilizado (toda sexta-feira, às 06h00 em Brasília).

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'Garoto alegre e curioso'

Mats em seu aniversário de quatro anos em 1993

Mats em seu aniversário de quatro anos em 1993

Direito de imagemFAMÍLIA STEEN / ARQUIVO PESSOAL
Image captionQuando Mats tinha quatro anos, os pais começaram a notar pais começaram a notar um comportamento incomum no menino: 'Ele evitava correr, cada vez mais... E gostava muito de ficar sentado'

Robert Steen, que é secretário de finanças de Oslo, capital da Noruega, contou que Mats "era um garoto alegre, positivo e curioso", que teve uma infância normal até os quatro anos de idade, quando os pais começaram a notar um comportamento incomum no menino: "Ele evitava correr, cada vez mais. E gostava muito de ficar sentado".

Exames médicos constataram que o garoto tinha Distrofia Muscular de Duchenne, uma doença rara que causa degeneração muscular em meninos. Os genes de Mats tinham um erro de codificação que impediria o desenvolvimento normal de seus músculos, e os pais foram avisados que os músculos do filho ficariam cada vez mais fracos.

"O médico disse que, aos cerca de oito, nove anos, os músculos em torno da bacia de Mats estariam tão fragilizados que ele não poderá mais andar."

Robert Steen

Robert Steen

Direito de imagemPATRICK DA SILVA SAETHER / NRK
Image captionApós a morte do filho, Robert Steen passou a receber várias mensagens de pessoas estranhas: 'Eu nunca tinha encontrado eles. Não sabia quem eram, nem sabia que existiam'

"Essas informações todas foram chocantes, tentei enxergar um pouco de luz nisso tudo, e disse ao médico: 'Ok, ele não poderá fazer esportes, mas pelo menos a doença não vai matá-lo'. Houve um longo silêncio do outro lado da linha (telefônica), aí o médico disse que os garotos com essa doença raramente passam dos 20 anos de idade."

Aos sete anos e meio, Mats já não conseguia mais andar. A família se mudara para uma casa adaptada a cadeira de rodas em Langhus, ao sul de Oslo. Ele continuava indo à escola, com ajuda de um assistente, e se ligava em jogos eletrônicos, como Donkey Kong e Supermario, no Game Boy. Aos 11 anos, passou a se ligar em jogos de aventura online.

"O jogo no qual ele se amarrou foi 'World of Warcraft'", relatou Robert. "Eu observava ele jogando, horas e horas. Era como ver um jogo de rúgbi ou futebol americano, em que você não entende as regras e não entende porque as pessoas estão gostando daquilo."

Mats passava horas e horas no computador, principalmente à noite, trancado em seu quarto. À medida que o tempo passava, sua condição física se deteriorava. Mesmo assim, diz o pai, ele parecia satisfeito com a vida.

"Nós achávamos que ele fosse ficar amargo, triste, mas isso não acontecia. Isso nos ajudava, ele parecia estar feliz. A gente não entendia direito por quê."

Robert, Trude e Mats foram tocando a vida. Por volta dos vinte e poucos anos, ele começou a escrever um blog sobre jogos online, com reflexões sobre sua vida e sua doença.

Sua saúde piorava. Em novembro de 2014, ele foi internado, e, uma noite, os pais foram chamados às pressas para o hospital.

Robert e Mats em Oslo, em julho de 2012

Robert e Mats em Oslo, em julho de 2012

Direito de imagemFAMÍLIA STEEN / ARQUIVO PESSOAL
Image caption'Há momentos em que só quero desabar e chorar', escreveu Mats em seu blog, 'mas, assim como Lord Ibelin, eu sempro consigo me erguer de novo'

"Eles ligaram pouco antes da meia-noite, pedindo para corrermos para o hospital, que Mats teria pouco tempo de vida. Quando chegamos, ele havia morrido havia 15 minutos", contou Robert.

Em luto, os pais começaram a preparar o funeral. Não havia muito quem convidar: alguns parentes e vizinhos. Foi quando Robert se lembrou do blog de Mats. Ele tinha dado a senha do blog para o pai, para que este checasse estatísticas de quantas pessoas haviam visitado o site e lido cada post. O pai resolveu avisar, ali, que seu filho havia falecido.

"Terminei o blog deixando meu endereço de email, para o caso de alguém querer entrar em contato."

Poucas horas depois, começaram a chegar os emails com as mensagens de pessoas desconhecidas. "Eu nunca tinha encontrado eles", disse Robert. "Não sabia quem eram, nem sabia que existiam."

"Eles começaram a contar histórias sobre Mats. Sobre o que ele representou pra eles. Das aventuras que tiveram com ele."

Mas afinal quem eram essas pessoas estranhas?

Lord Ibelin Redmoore

Lisette Roovers / Rumour

Lisette Roovers / Rumour

Direito de imagemPATRICK DA SILVA SAETHER / NRK
Image captionEm Azeroth, a holandesa Lisette Roovers é a ladra 'Rumour', que foi namorada de Lord Ibelin

Eram pessoas como a holandesa Lisette Roovers ou o norueguês Kai Simon Fredriksen, que frequentavam o mundo fantástico virtual de Azeroth, no jogo de aventura World of Warcraft.

Criado em 2004, World of Warcraft é um jogo de role play, em que jogadores assumem identidades fictícias — ou avatares — e interagem entre si. É um mundo frequentado por elfos, duendes, anões, gigantes, monstros e humanos, entre toda espécie de vilões e aventureiros.

Em Azeroth, Mats gostava de passar o tempo em um continente chamado Reino do Leste. Ali, ele não era Mats, o garoto com uma doença degenerativa em Oslo. Ele era Lorde Ibelin Redmoore, um nobre combatente em trajes medievais, alto, de longos cabelos ruivos, presos em rabo de cavalo, forte, atlético, portando uma espada.

Azeroth, World of Warcraft

Azeroth, World of Warcraft

Direito de imagemBLIZZARD ENTERTAINMENT

"Eu estava vagando pela cidade, tentando achar alguém para conversar", conta Lisette Roovers sobre o dia em que conheceu Mats no mundo virtual. Ali, Lisette era a personagem humana Rumour, uma ladra, especializada em roubar sepulturas.

"Aí cheguei à beira de um grande lago. Estava escurecendo, as pessoas já estavam indo embora, quando encontrei um anão e um humano em volta de uma fogueira. Eles conversavam sobre lutas contra monstros e banalidades do dia a dia. Eu conversei um pouco com eles, e resolvi roubar o chapéu de Ibelin. Foi assim que nos conhecemos, graças a um chapéu roubado."

Lisette foi uma das primeiras amizades de Mats em Azeroth e conviveu com ele por mais de uma década. Eles passavam horas juntos jogando.

"Continuamos conversando em outras ocasiões, e um belo dia, ele me perguntou: Você quer ser minha namorada? Eu gostava dele e aceitei. Por que não? Ele era gentil, atencioso, sempre prestava atenção, queria fazer a coisa certa — ao contrário do que eu fazia."

"Mas a gente brigava muito. Eu sumia, passava muito tempo roubando tumbas, ele não gostava disso. Além disso, ele vivia saindo com outras mulheres. A gente rompeu o namoro, mas no mundo virtual isso é bem menos complicado. E os dois sabiam que essa era uma relação entre personagens. A gente continuava se falando quase toda noite."

Lord Ibelin e Rumour pertenciam à mesma irmandade no Reino do Leste em Azeroth, chamada Starlight. E Rumour não foi a única namorada de Ibelin nesse mundo, como contou o líder da Starlight, Nomine, um avatar de armadura amarela e chapéu de pele de leopardo.

Nomine / Kai Simon Fredriksen

Nomine / Kai Simon Fredriksen

Direito de imagemPATRICK DA SILVA SAETHER / NRK
Image caption'Nomine', ao lado de Kai Simon Fredriksen, era o líder da irmandade Starlight, uma 'das mais respeitadas' no mundo de Azeroth

"Há várias histórias de outras mulheres da irmandade dizendo ao Lorde Ibelin para parar de flertar com outras. Ele vivia se apaixonando. Foi casado duas ou três vezes. O casamento mais longo durou cinco anos."

Na vida real, Nomine é Kai Simon Fredriksen, de quarento e poucos anos, que trabalha no setor de tecnologia e que também passou vários anos frequentando o mundo virtual de Mats. Ele contou ao programa Outlook da BBC que Lord Ibelin era uma figura chave na Starlight, uma das irmandades mais conhecidas do universo de Azeroth.

"Nós éramos bem conhecidos. Respeitados como jogadores sérios e dedicados que se juntaram em um grupo que sabia como se proteger em uma guerra. E Lorde Ibelin era uma pessoa em que todos confiavam, não importava se teu dia estivesse ruim, ele estava sempre ali para conversar. Além disso, ele era nosso investigador, o espião enviado para descobrir os planos de irmandades inimigas e resgatar pessoas."

As amizades que começavam em Azeroth muitas vezes extrapolavam para a vida real.

"Eu moro em Oslo, Mats morava em Oslo", disse Kai. "Um dia, perguntei a ele se eu podia dar um pulo até onde ele morava para dar um alô. Mas ele não quis. Olhando pra trás, acho que ele não queria que eu desmontasse a imagem que tinha feito dele."

Robert Steen, o pai de Mats, estima que o filho tenha passado mais de 20 mil horas de sua vida online. É como se tivesse dividido seu tempo entre dois mundos. E tanto seus pais como seus companheiros em Azaroth achavam que Mats era feliz. Mas o blog, que começou a escrever aos 24 anos, um ano antes de sua morte, revelava que a situação não era bem assim.

desenho de Lisette Roovers

desenho de Lisette Roovers

Direito de imagemFAMÍLIA STEEN / ARQUIVO PESSOAL
Image captionIbelin abraça Rumour, em desenho feito por Lisette Roovers

"Passo a maior parte de minha vida num lugar chamado Azaroth. Lá, minha deficiência não importa, estou livre das amarras e posso ser quem eu quiser. Lá me sinto normal", escreveu Mats. "Mas há momentos em que só quero desabar e chorar; mas, assim como Lord Ibelin, eu sempro consigo me erguer de novo."

Aos poucos, Mats começou a compartilhar seu blog com alguns amigos da Starlight. Mas ele nunca revelou o quanto sua saúde estava se deteriorando, nem para os amigos mais próximos.

"Eu não tinha me dado conta da gravidade da situação", afirmou, por exemplo, Lisette. "Eu sabia, pelo blog, que ele tinha a distrofia de Duchenne, e que seus músculos estavam se deteriorando, mas eu pensava: 'as pessoas morrem aos setenta anos'. No meu mundo, ele ainda vai viver pelo menos uns vinte anos."

Mas nem todos na irmandade de Starlight sabiam da situação de Mats. Em certa ocasião, ele foi levado ao hospital e passou uma semana sem aparecer em Azaroth, causando apreensão entre a comunidade virtual.

"As pessoas começaram a fazer perguntas", contou Kai. "Tive de assegurá-las de que estava tudo bem com ele. Mas eu mesmo estava bem preocupado. A gente precisava dele. Eu nunca parei para pensar que ali estava uma pessoa que estava morrendo."

'Foi como um golpe físico'

No dia 19 de novembro de 2014 veio a postagem de Robert Steen no blog do filho, anunciando sua morte e causando uma onda de comoção e tristeza no mundo de Azaroth. Lorde Ibelin havia morrido.

Lisette disse ter ficado "em estado de choque" quando leu o blog. "Não acreditava que meu amigo morrera e que não teríamos mais nossas aventuras juntos."

"Foi como um golpe físico", disse Kai. "Me machucou muito."

Memorial de Mats 'Ibelin' Steen

Memorial de Mats 'Ibelin' Steen

Direito de imagemFAMÍLIA STEEN / ARQUIVO PESSOAL
Image captionTúmulo de Mats 'Ibelin' Steen

Mas os amigos de Mats não queriam apenas seguir adiante com suas vidas. Lisette, por exemplo, tinha passado mais horas com ele do que com pessoas da vida real. Assim, a irmandade de Starlight, do Reino do Leste do mundo de Azeroth, resolveu cruzar para o mundo real. Eles entraram em contato com Robert, por email, e lhe contaram sobre a vida, as aventuras e os amigos de Lord Ibelin.

Os dois mundos se encontraram, pela primeira vez, pouco antes do funeral de Mats em Oslo. Além de Lisette e Kai, compareceram amigos do Reino Unido, da Finlândia e da Dinamarca.

Como representante da irmandade Starlight, Kai Simon fez um discurso sobre Mats e Lord Ibelin no funeral.

"Eu conheci Mats em um mundo sem limitações para o corpo, onde não importam os desafios que você enfrenta no dia a dia, um lugar onde você pode escolher quem você quer ser... Todos nós morremos duas vezes. A primeira, quando o corpo morre. E a segunda, a mais importante, quando morre a última pessoa que se lembra de você. Mats vai viver por muito tempo em nossas memórias coletivas. Obrigado Mats, obrigado por ter feito a diferença."

E os pais de Mats, Robert e Trude, puderam finalmente entender por que o jovem rapaz solitário que vivia trancado no quarto, parecia, apesar de tudo, ser feliz.

"Nossa maior tristeza em relação à vida de Mats era de ele não ter tido oportunidade de fazer amigos. Achávamos que ele não teve a chance de deixa


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