"A conclusão é que o princípio da laicidade, mais respeitado no Uruguai, provoca constrangimento entre os parlamentares do país na hora de tratar o assunto a partir uma perspectiva religiosa", afirma.
Segundo Teixeira, a argumentação religiosa no plenário e a perspectiva religiosa no embasamento de projetos de lei provocam a imposição das crenças de um grupo sobre outros setores da sociedade.
Essa é também a conclusão das pesquisadoras Loiane Prado Verbicaro e Paloma Sá Souza Simões em artigo publicado em 2019 na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Elas investigaram se a influência religiosa percebida em projetos de lei e discursos feitos em plenário por deputados federais entre os anos 2013 e 2016 no Brasil feria a laicidade estatal.
No estudo, as pesquisadoras identificaram que os parlamentares embasavam discursos em opinião religiosa, mas usavam uma argumentação racional no momento de propor leis.
Verbicaro e Simões chegaram à conclusão de que os parlamentares respeitavam a laicidade na hora de fazer projetos, mas não quando discursavam. Para as autoras, discursos políticos ou projetos de lei pautados em argumentos religiosos ferem a "doutrina da neutralidade estatal e os direitos fundamentais dos cidadãos", segundo trecho do artigo.
A pesquisa foi feita a partir de projetos de lei e de discursos no plenário da Câmara dos Deputados. Como critério de busca, foram utilizadas palavras-chave como religião, Deus, aborto e homoafetivos.
A Folha de S.Paulo fez uma pesquisa similar à realizada por Verbicaro e Simões e procurou no site da Câmara dos Deputados por discursos que contivessem os termos "aborto" e "Deus". A pesquisa, em novembro, gerou 555 resultados na página de discursos e debates do site da Câmara.
Uma das parlamentares que mais aparecem nos registros é Chris Tonietto (PL-RJ), autora do PL 434/2021, que institui o Estatuto do Nascituro. O projeto cria uma restrição ainda maior ao aborto permitido por lei, o que incluiria, por exemplo, casos decorrentes do estupro.
A justificativa diz, entre outros pontos, que "o aborto constitui uma grave violação da Lei Natural". "O trecho faz referência a uma lei natural divina, ao direito da pessoa nascer", afirma Luis Gustavo Teixeira. "É um argumento religioso e viola a laicidade estatal."
Nos discursos sobre o aborto que Tonietto faz no plenário, chama o ato de "intrinsecamente mau" e pede "que o imaculado coração de Maria nos livre da maldição do aborto".
O PL 5.167/09 cita trechos da Bíblia para fundamentar a proposição que proíbe que pessoas do mesmo sexo possam se casar.
O texto diz que os autores "representam o segmento católico e evangélico" e tem argumentos como: "Deus nos criou e designou o casamento e a família como a mais fundamental das relações humanas". A proposta, de 2009, é de autoria do então deputado pelo PSB do Espírito Santo Capitão Assumção e de Paes de Lira (à época no PTC-SP).
O projeto de lei recebeu críticas de entidades LGBTQIA+, que foram à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a proposta. Em documento entregue à corte, organizações como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) afirmam que o projeto viola o Estado democrático de Direito e "fazem uso de uma leitura enviesada dos textos bíblicos".
Joana Zylbersztajn, doutora em direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) e autora do livro "A Laicidade do Estado Brasileiro", concorda que a fundamentação religiosa em projetos de lei viola a laicidade, mas diz não haver problemas em parlamentares se valerem do discurso no plenário.
"Faz parte do jogo o parlamentar fazer um discurso para a sua base. Mas o Congresso precisa garantir que os projetos não sejam religiosos, mesmo quando há a tradução do discurso para o universo jurídico", afirma.
Ana Elisa Spaolonzi, doutora em educação e professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), afirma que o discurso religioso só deveria chegar ao Congresso se fosse possível garantir a pluralidade de religiões na Casa.
"Deveria haver, na época das eleições, uma regulamentação com relação a pessoas que se candidatam no âmbito público proferindo valores privados, como o religioso."
A reportagem tentou contato com as três frentes parlamentares citadas na reportagem. A Frente Parlamentar Mista Cristã, afirmou, por meio de nota, que o Parlamento é um espaço de livre discussão de ideias. Disse que "restringir o debate é limitar a democracia" e que as frentes religiosas existem para fortalecer o exercício da laicidade.
"O tamanho e a força dessas frentes parlamentares refletem o crescente número de cristãos em nosso país, que hoje são maioria. Todos somos brasileiros e defendemos aquilo que é bom para o Brasil, mantendo o país como um país conservador", afirmou em nota. As demais frentes parlamentares não responderam.
A reportagem também contatou a deputada federal Chris Tonietto para comentar o assunto, mas não teve resposta.
Bancada Evangélica no Congresso
De 2003 a 2007: 19, sendo 18 deputados e 1 senador;
De 2007 a 2011: 40, sendo 36 deputados e 4 senadores;
De 2011 a 2015: 73, sendo 70 deputados e 3 senadores;
De 2015 a 2019: 60, sendo 57 deputados e 3 senadores;
De 2019 a 2023: 92, sendo 85 deputados e 7 senadores;
De 2023 a 2027: 88, sendo 75 deputados e 13 senadores.
Fonte: Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar)