06/09/2023 às 13h51min - Atualizada em 06/09/2023 às 13h51min

Como Paulo Freire virou pivô de disputa com queima de livros didáticos no México

Governo de Lopez Obrador, que tenta fazer sucessor em 2024, revisou livros didáticos para retirar conteúdo 'neoliberal' da educação pública. Agora, é acusado pela oposição de tentar doutrinar politicamente estudantes mexicanos.

AB Notícia News
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CARLOS LOPEZ/EPA-EFE/REX/SHUTTERSTOCK

Figura central na chamada guerra cultural entre a esquerda e a direita no Brasil nos últimos anos, o educador Paulo Freire, um dos pedagogos brasileiros mais estudados no mundo, acaba de virar pivô em uma disputa política no México.

Comum em países como os Estados Unidos, a escalada de tensão em torno de símbolos culturais, morais e sexuais e de doutrinas educacionais levou a fogueiras de livros didáticos, à suspensão da distribuição do material escolar a milhões de alunos e a ameaças de morte contra um dos mais altos funcionários do governo federal de Andrés Manuel Lopez Obrador.

O presidente mexicano, conhecido pelas iniciais AMLO, é do partido esquerdista Morena (Movimento Regeneração Nacional), que tenta vencer as eleições presidenciais mexicanas de 2024.

 

Nas últimas semanas, os livros didáticos das escolas públicas primárias e secundárias do ano letivo 2023/2024 começaram a ser distribuídos ao redor do México. Seu conteúdo — com erros de informação pontuais sobre astronomia e matemática e menções à “teoria da revolução” de Freire — fizeram explodir uma tensão que se avolumava há mais de dois anos no cenário político do país.

 

Sem conteúdo 'neoliberal'

 

Em agosto de 2021, AMLO anunciou que faria uma revisão dos conteúdos educativos mexicanos para retirar abordagens “neoliberais”.

Segundo o presidente mexicano, as alterações eram necessárias para incluir na “educação uma dimensão social, humanística e científica, que havia sido perdida porque, durante o período neoliberal, não queriam que se conhecesse nossa história”.

 

As medidas seriam necessárias para que o governo pudesse entregar sua prometida “Quarta Transformação”, slogan da campanha de AMLO que prometia um México menos desigual, com melhores e mais bem acessados serviços públicos, fim de privilégios a autoridades e foco no combate à corrupção. Seria, “pacificamente”, uma quarta quebra histórica na ordem social do país. As três anteriores, segundo esse discurso, foram a independência, a reforma (que retirou o poder da Igreja Católica) e a revolução mexicana.

Para a missão educacional, AMLO escalou o filólogo mexicano Marx Arriaga Navarro, empossado como diretor-geral de Materiais Educativos da Secretaria de Educação Pública, responsável pela distribuição de mais de 50 milhões de livros didáticos.

Para auxiliá-lo, Navarro convidou Sady Arturo Loaiza Escalona, ex-diretor da Biblioteca Nacional da Venezuela, entre outros postos ocupados durante o regime chavista venezuelano.

Segundo o governo, o trabalho na área educacional foi feito com consultas públicas. Para os oposicionistas, no entanto, não houve qualquer transparência e a reformulação foi feita no “escurinho”.

Não demorou para que a oposição e entidades conservadoras da sociedade civil acusassem o governo AMLO de promover doutrinamento ideológico e panfletarismo comunista com o material didático.

Antes mesmo que o conteúdo fosse público, a Unión Nacional de Padres de Familia obteve na Justiça Federal, em maio, uma ordem para que a impressão do material fosse interrompida e, em seu lugar, fossem reutilizados os livros didáticos do ano anterior.

 

Dizendo ter consultado dezenas de universidades públicas e quase dois mil professores e cumprido com todas exigências legais, o governo AMLO não atendeu à ordem judicial e seguiu com o processo de distribuição escolar dos livros.

 

O que há nos livros

 

A situação política atingiu o ponto de fervura quando os conteúdos dos 18 novos livros finalmente foram conhecidos.

Críticos afirmam que o novo material didático teve redução nos conteúdos de matemática e literatura. E a mídia mexicana recolheu exemplos de erros factuais: os livros do terceiro ano trariam a informação de que o ex-presidente mexicano Benito Juárez teria nascido no dia 18 de março de 1806, e não no dia 21 de março, que seria o correto. A data é um dos feriados mais importantes e conhecidos dos mexicanos, já que Juárez, o primeiro presidente indígena do país, é até hoje celebrado como um dos mais relevantes líderes da história do México.

 

Além disso, um livro do quinto ano trazia um infográfico do Sistema Solar com erros ortográficos (como a palavra “planera” em vez de “planeta”) e de configuração — a Terra aparecia na mesma órbita que Saturno, por exemplo. No material de matemática do terceiro ano primário, uma ilustração sobre frações indica que ⅚ é menor do que ¾, que é menor que ⅝, o que é incorreto.

Mas o ápice da indignação teria sido causado pela entrada de Paulo Freire em cena. Já nas primeiras páginas de apresentação dos 18 novos livros, endereçada aos professores, o nome do educador surge com a seguinte mensagem:

 

“Paulo Freire, pedagogo brasileiro que por toda a sua vida buscou formas de libertar os marginalizados e oferecer-lhes uma teoria que lhes permitisse adquirir os princípios ideológicos para lutar por justiça, dizia: ‘Cada vez mais nos convenceremos da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam na revolução um ato de amor, tanto quanto um ato criador e humanizador. Para nós, a revolução não se faz sem uma teoria da revolução e, portanto, sem consciência (...)’. Prezada professora, prezado professor, o livro que tem em suas mãos representa o esforço da Secretaria de Educação Pública por brindar uma teoria que acompanhe a revolução que realiza em suas aulas”.

 

 

No Brasil, Paulo Freire, formulador da Pedagogia do Oprimido, que preconiza a educação de adultos analfabetos a partir da experiência e das relações cotidianas destes indivíduos, já havia causado celeuma entre conservadores de direita.

Em setembro de 2022, em entrevista à Rede TV, o então presidente Jair Bolsonaro disse que “tem que tirar esse método Paulo Freire que não levou o Brasil a progresso nenhum, muito pelo contrário, viramos uma fábrica de militantes”. Em 2019, Bolsonaro já havia afirmado que Freire era um “energúmeno, ídolo da esquerda”.


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