11/04/2023 às 08h59min - Atualizada em 11/04/2023 às 08h59min

Dólares 'evaporam' na Bolívia: cidadãos enfrentam fila de até 6 horas para trocar dinheiro

Moradores correm para comprar a divisa americana e preservar suas economias. Governo do socialista Luis Arce enfrenta série crise financeira, com reservas cambiais à mingua

AB Notícia News
O Globo
Bloomberg

A fila começa a se formar do lado de fora do Banco Central, no centro de La Paz, no fim da noite. Agachados debaixo dos cobertores e bebendo chocolate quente para espantar o frio a 3.600 metros de altitude nos Andes, os bolivianos esperam horas e horas por uma chance de colocar as mãos no que talvez tenha se tornado a coisa mais difícil de se encontrar em toda a Bolívia: dólares.

 

Há poucos dólares em bancos comerciais, casas de câmbio ou até mesmo no mercado negro, onde os comerciantes trabalham em bancas montadas pelas esquinas à sombra da regulação do banco central.

- Imagina quanto tempo estamos perdendo em uma transação que deveria ser simples - disse Ismael Vargas, um advogado que ficou seis horas na fila e, no final, foi orientado a voltar em sete semanas para obter os US$ 5.000 que queria.

A crise na Bolívia vem se formando há muito tempo. Anos de negligência esvaziou a indústria de exportação dominante no país, a do gás natural. Sem combustível e com dificuldade de captar recursos devido às alta taxas de juros no mercado internacional, o governo do socialista Luis Arce encontra-se desesperadamente sem o dinheiro necessário para sustentar a moeda local. O boliviano foi indexado a uma taxa próxima a 7 por dólar desde os anos do 'boom' das commodities.

 

Venda de ouro

 

Os cofres do banco central estão tão esgotados - o último relatório colocou o valor em US$ 372 milhões, o suficiente para cobrir apenas duas semanas das importações - que Arce agora está pressionando os parlamentares a derrubar uma lei que impede o governo de vender parte das 43 toneladas de ouro que o país detém em reservas. Hoje, as poucas reservas cambiais restantes estão bloqueadas em ouro e o governo não tem permissão para convertê-las em dólares americanos.

Um negociante de moeda explicou a crescente angústia em La Paz desta forma: as pessoas venderam dólares até ficar sem nada; depois, começaram a juntar os euros que tinham; quando eles se foram, voltaram-se para pesos chilenos e soles peruanos - qualquer coisa para proteger o valor de seu dinheiro para o caso de a economia quebrar.

 

Como todos os outros que trabalham com câmbio, ele pediu para não ser identificado, pois o trabalho se tornou muito arriscado. Treze pessoas foram presas por suspeita de negociação no mercado negro em apenas um dia semana passada, parte da repressão que se tornou uma marca registrada da resposta do governo de Arce à crise.

- Essencialmente, o país ficou sem dólares - disse Antonio Saraiva, economista boliviano que leciona na Mercer University de Atlanta. - Quando as pessoas veem outras pessoas fazendo fila, e passando a noite lá para guardar seu lugar, todo mundo diz como isso é ruim.

 

Morales e Chavez

 

A atual crise energética da Bolívia remonta a 2006, quando o líder esquerdista Evo Morales subiu ao poder. Semanas depois de sua vitória, ele voou para Caracas, onde seu mentor e mais próximo aliado, Hugo Chávez, convenceu-o a seguir o exemplo da Venezuela e aumentar o controle estatal de sua indústria de gás. Quatro meses depois, a Bolívia nacionalizou campos de gás e refinarias operadas pela Repsol, TotalEnergies e Petrobras.

No começo, tudo funcionou muito bem. Os preços internacionais do petróleo e do gás disparavam e a Bolívia arrecadava dinheiro, o que Morales, ao contrário de seu colega em Caracas, distribuiu com prudência.

A economia mais do que quadruplicou de tamanho durante sua administração, a pobreza diminuiu, a expectativa de vida aumentou e o número de crianças que terminam o ensino primário subiu para quase 100%.
 

Mas Morales falhou em destinar fundos adequados para permitir que a gigante estatal do gás investisse em exploração. As reservas de gás começaram a diminuir e também as vendas no exterior, que em seu pico representou quase metade de todas as exportações em US$ 6 bilhões. Essa receita caiu 51% em relação a 2014 e deve desaparecer completamente até 2030, segundo a consultoria Wood Mackenzie.

No ano passado, a Bolívia tornou-se um importador combustíveis fósseis líquido pela primeira vez desde a década de 1990, registrando um déficit de US$ 1,3 bilhão.

- É preciso investir agressivamente em exploração e campos em desenvolvimento. A economia boliviana está pagando atualmente o preço por não ter feito esse investimento agressivo - disse o ministro da Fazenda, Marcelo Montenegro a repórteres no mês passado.

 

Biocombustíveis e lítio

 

Arce, que serviu como ministro das finanças durante grande parte do mandato de 14 anos de Morales, tenta reverter a queda com sete poços exploratórios previstos para este ano. Seu governo tem aproveitado os apertados dos mercados globais de gás para cobrar preços mais altos por suas exportações em declínio, e está desenvolvendo biocombustíveis.

Também está se voltando para os depósitos de lítio da Bolívia, o maior do mundo. Em janeiro, Arce assinou um contrato de US$ 1 bilhão com a fabricante chinesa de baterias Contemporary Amperex Technology para explorar as reservas das gigantescas planícies de sal da Bolívia.

Mas a Bolívia precisa de mais rodovias e parceiros adicionais para expandir seu potencial - coisas que provavelmente não acontecerão tão cedo, dizem os analistas.
 

Erros recentes do governo alimentaram ainda mais a crise cambial. O banco central parou de reportar o valor das reservas estrangeiras em fevereiro e, no mês passado, o governo pediu às pessoas que reduzissem suas compras de dólares. Em resposta, os bolivianos correram para comprar mais. Para alguns deles, o passado hiperinflacionário do país ainda está fresco na memória.

A dona de casa Violeta Lopez se lembra de ver seus pais colocarem maços de bolivianos em mochilas para fazer compras nos anos 1980.

- Era uma quantia enorme de dinheiro, mas não valia nada.- disse Violeta, enquanto esperava na fila por dólares. - É por isso que estamos tão alarmados.

A inflação anual atingiu um pico de mais de 20.000% na época. Hoje, é de 2,6%, o que a torna uma das taxas mais baixas do mundo - menos da metade dos Estados Unidos, Reino Unido ou Alemanha. Na opinião de Violeta, porém, o agravamento da crise pode desencadear um súbito espiral de preços. Ela estava querendo comprar US$ 30 mil.

 

 


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